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Porque está realizando pesquisa sobre políticas culturais empreendidas por ministros da Cultura entre os anos de 1985 e 2009, o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada -, fundação federal que tem por objetivo fornecer “suporte técnico” ao governo para avaliação e formulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento, enviou-me questionário contendo dez perguntas sobre minha experiência como gestor cultural. Acreditem, as respostas dariam margem para criação de um tratado de mil páginas, mas limitei-me ao essencial.
O leitor talvez não saiba, mas entre março de 1990 e março de 1991, estive à frente da Secretaria Nacional da Cultura, no Governo Collor de Mello, responsável por reforma administrativa que tinha por fim diminuir a intervenção do Estado na vida institucional do País – e que se tornou célebre por fechar doze empresas estatais, entre elas a Embrafilme, núcleo de corrupção (também ideológica) na esfera do cinema.
Quanto ao IPEA, segundo se diz, tornou-se hoje um organismo inteiramente subordinado às pretensões estatizantes do “governo forte” de Lula da Silva. Para dar crédito à veracidade do enunciado, o seu atual presidente, Marcio Pochmann, além de professor da Unicamp (paraíso dos “estruturalistas” cepalinos, vale dizer, dos profissionais do intervencionismo estatal), é filiado ao PT.
De todo modo, mesmo correndo risco de ver o que penso só parcialmente publicado, ou editado ao modo da visão crítica do IPEA, respondi todas as perguntas dos seus pesquisadores. A indagação final do questionário era: “No seu período (de gestão) se discutia a construção de um Sistema Nacional de Cultura? Se sim, quais os parâmetros? Se não, por quê?”.
Eis o que respondi: Não criei sistema algum, porque só governo de vocação totalitária, ou coletivista, pensa em construção de um “Sistema Nacional de Cultura”. Senão, vejamos:
1 – Quando, nos anos de 1970, o general Médici esteve à frente do Executivo, propôs um sistema de “Diretrizes para uma Política Nacional de Cultura”, na qual a “defesa dos nossos bens culturais” era considerada uma “questão de segurança nacional”. Visando tal objetivo, que reduziu a cultura ao triste papel de mero instrumento de política setorial de governo, os militares também promoveram o seu PAC (Plano de Ação Cultural). Com ele, não abriram mão de gerir, financiar, promover, coordenar e fiscalizar programas, planos e projetos na área cultural, de forma centralizada, praticamente não abrindo espaço para a ação da sociedade.
2 – Com a mesma visão de controle institucional, durante o governo fascista de Mussolini, na Itália, o filósofo Giovanni Gentile, ministro da Instrução Pública, com o seu “idealismo objetivo”, propugnava pela Unificação de um Sistema Nacional de Educação (e, por extensão, de cultura), de cunho corporativista, ao tempo em que propunha, para abrigar um “Nuovo Rinascimento”, a adoção da legenda totalitária “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, ninguém fora do Estado”, a ser reproduzida nas capas dos livros, cadernos escolares, museus, etc., e a ser exibida ao público no início de cada encenação das artes representativas.
3 – Joseph Goebbels, ministro da Propaganda e da Comunicação Pública de Hitler, responsável pela sistematização da política cultural alemã, estabeleceu “Projeto Nacional-Socialista de Cultura” para o Terceiro Reich, cuja proposta era desenvolver entre os povos germânicos os valores culturais da raça ariana, antagônicos aos valores “sujos” da cultura judaica, dos quais – dizia o ministro – Sigmund Freud era um dos expoentes.
4 - Já na União Soviética da Era Stalinista, Andrei Djanov, sistematizador da política cultural comunista, era o ideólogo do “realismo socialista”, a teoria (na realidade, doutrina oficial) que tinha como principio comprometer o pensamento e a produção artística com a “transformação ideológica e a educação dos trabalhadores para a formação do espírito socialista”. Jdanov, entre 1936/1938 um dos responsáveis na URSS pela política de extermínio em massa do Grande Terror, na qual foram assassinadas mais de um milhão e meio de pessoas (entre os quais milhares de artistas, intelectuais e bolcheviques dissidentes), tinha como objetivo o controle total da criação artística, para o qual propunha planos, metas e regras. Uma delas, imposta pelo Komintern e aceita pelos PCs em todo mundo, inclusive o do Brasil, figurava o banimento nas manifestações artísticas dos “vícios da ambigüidade, da ironia, do subjetivismo, das abstrações e do formalismo” - todos considerados “arcaísmos do degenerado comportamento burguês”.
5 – Em Cuba, Fidel Castro, fiel seguidor dos postulados estabelecidos por Djanov, que tinha como tarefa ideológica a “ofensiva sistemática contra o imperialismo norte-americano”, transformou as instituições culturais da Ilha em aparatos de guerra contra o capitalismo. Em 1971, em discurso público, para manter intacto o seu regime totalitário, ainda hoje reinante, o ditador cubano tornou claro aos intelectuais e artistas presentes qual seria a “sistemática cultura” a prevalecer em Cuba. À época, Fidel pontificou: “Dentro da revolução, existe tudo; fora da revolução, não existe nada”. E até hoje a vida cultural da Ilha, explorando ideologicamente as manifestações da criação popular e as atividades artísticas, se limita a praguejar contra o “imperialismo ianque” e a trovejar loas a uma revolução que sobrevive unicamente por força da violência, do cárcere e do silêncio.
No Brasil moderno, a partir da Era Jango, a construção de um “Sistema Nacional de Cultura” teve como prioritário, dentro da estratégia traçada por Gramsci nos “Cadernos do Cárcere”, a ocupação de espaços nas instituições culturais do Estado (“aparelho hegemônico”), para fins da promoção da “revolução passiva”, de fundo marxista.
Com breve interregno no Governo Collor – que, por motivos óbvios, não conseguiu levar adiante a sua reforma administrativa -, a estratégia de “ocupação de espaço” dentro do aparelho do Estado foi vertiginosamente acelerada, em especial no mandato transitório de Itamar Franco e nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, “intelectual orgânico” por excelência, cultor do “Estado Ampliado”, cuja característica básica – para fins do controle social - é a assunção pelas ONGs (entidades, em geral, de esquerda) das tarefas tidas como próprias do Estado.
Com a chegada do PT ao poder, partido marcado pela teoria e prática leninista, às sutilezas ideológicas tucanas (de natureza gramscistas) foram agregadas ações mais ortodoxas no aparelhamento do Estado, transformado num apêndice do próprio PT – o novo Príncipe Moderno.
No Plano da cultura oficial, sempre a contar com os bilhões de reais das empresas estatais (vide, por exemplo, o caso Petrobras, no momento objeto de CPI), o processo funcional de “transição para o socialismo” foi acentuado. Subordinado às resoluções anuais do Foro de São Paulo, entidade fundada por Fidel Castro e Lula (em 1990) com a finalidade de “recriar na América Latina o que foi perdido no Leste Europeu”, o governo petista promove hoje nos espaços públicos de ensino cursos de artes administrados por “especialistas” cubanos; investe, valendo-se do dinheiro do contribuinte, milhões de reais em filmes de denúncia social e propaganda; financia a produção de shows e peças engajadas; patrocina edições de livros empenhados em acirrar a luta de classes; apóia com largos recursos festivais, encontros, mostras e seminários comprometidos com “o resgate da nossa popular”, para fins de “conscientização das massas”; disponibiliza polpudas verbas para centenas de ONGs e fundações (tais como, por exemplo, a Perseu Abramo, vinculada ao PT), todas elas voltadas para a difusão da “ideologia revolucionária” – e por ai vai.
Resultado: em vez da criatividade genuína, voltada para a difusão de valores espirituais universais e permanentes, institucionalizou-se no País a indústria do ativismo cultural, centrada na substituição da obra de arte pela febre do evento “político-cultural-mediático”, de cuja manipulação dependem liberações de verbas públicas, a sustentação do clientelismo da “casta de serviço” e a expansão da Nomenclatura cultural dentro do aparelho do Estado.
Como conseqüência deste processo intervencionista, adeus às possibilidades de se promover os valores mais elevados da cultura, justamente aqueles que expressam a autoconsciência do homem. No plano do pensamento, em vez de Gilberto Freyre, Miguel Reale, Mario Ferreira dos Santos, Sergio Buarque de Holanda, Vianna Moog, Otto Maria Carpeaux ou Guerreiro Ramos, por exemplo, agora termos Emir Sader, Adauto Novaes, Marilena Chauí, Chico de Oliveira e Frei Beto. No plano da criação literária, substituindo Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Marques Rebelo e Nelson Rodrigues – temos Chico Buarque (romancista), Paulo Coelho, Rubem Fonseca, Milton Hatoum, Adriana e João Falcão.
Qual é a explicação para fenômeno tão avassalador? Por que a intervenção estatal na cultura inibe a expressão da criatividade qualificada e só tem abastardado a percepção do que se convencionou chamar de Espírito brasileiro? Por que o nosso idioma se desintegra e empobrece a cada dia? Por que o estilo de vida do nosso povo não inspira a criação de valores estéticos permanentes e universais? E por que é cada vez mais inexpressiva a relação entre arte e sociedade, banal o produto artístico, supérflua e efêmera a imagem da nação refletida no conjunto das obras oficialmente amparadas?
Na minha visão, exclusivamente pela hipertrofia do intervencionismo, que carrega dentro de si o feto do Estado Totalitário. Como se sabe, a teoria do Estado Totalitário se delineia na crença de que o indivíduo é produto exclusivo do meio social e que ele não passa de mera soma de fatores que agem e interagem na sociedade que o circunda. Na compreensão totalitária, o indivíduo deve tudo ao meio a que pertence e a sociedade onde vive. Ao eliminar a hipótese do livre-arbítrio, e da transcendência do homem, o Estado totalitário (em essência, intervencionista) anula, por meio do seu aparato coercitivo, a integridade do ser individual, aplainando, pela impostação ideológica, o seu poder de criatividade.
De fato, nutrido em fantásticas utopias igualitárias, o Estado Totalitário, cuja essência é o culto ao ser coletivo, institui e amplia o controle sobre o indivíduo, visto admitir que o exercício das liberdades individuais realça a diferença entre os homens. Como é fácil verificar, as diversas formas de controle social não se materializam apenas pela ação do poder de polícia. Por isso, as modernas sociedades de massas, em geral totalitárias, para nivelar os indivíduos, e unificá-los em torno de um só pensamento, procuram construir de forma aberta ou subliminar os “sistemas nacionais de cultura” – o que, cedo ou tarde, obrigatoriamente, os leva à condição de seres padronizados na engrenagem do Estado Utópico idealizado por monstros.
Eis porque – conclui no meu arrazoado aos pesquisadores do IPEA -, na qualidade de gestor da Pasta da Cultura, no curto período do Governo Collor de Mello, jamais pensei em construir qualquer tipo de “Sistema Nacional de Cultura”.
Deus me livre!
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