Por Carlos Salinas Maldonado
UOL Notícias
El País
Nesta tarde sufocante de novembro ninguém fala da crise política no ônibus. Subir na linha 114 que faz o trajeto entre a zona industrial de Manágua, a sombria capital da Nicarágua, e o incerto centro da cidade, é fazer uma viagem surrealista. Pelas janelas do veículo desconjuntado é possível ver os cartazes de um sorridente Daniel Ortega pregando o fim da pobreza, enquanto essa mesma pobreza entra pela porta do ônibus.
Em uma das paradas, uma senhora morena e baixinha sobe com a manga de sua blusa levantada até o ombro para mostrar uma bola de carne que deforma seu braço. "Tenho um tumor", diz ela, "e preciso operá-lo". A mulher conta aos passageiros suas aflições: está desempregada, não tem apoio de ninguém e teme perder o braço se não for operada.
"Deem uma ajudinha, por favor", pede. Os passageiros tiram moedas dos bolsos, um córdoba por pessoa. Na Nicarágua, com um córdoba é possível comprar um chiclé.
Quase três anos depois de ter assumido o poder, as promessas do presidente Daniel Ortega de construir um país mais justo se desvanecem no dia-a-dia. A Nicarágua, com 79% da população vivendo com US$ 2 (R$ 3,43) por dia, continua disputando o segundo lugar como o país mais pobre da América Latina. À pobreza, soma-se a incerteza política que teve início há um ano, depois da crise desatada pelas denúncias de fraude nas eleições municipais de 9 de novembro de 2008, que deram à Frente Sandinista de Libertação Nacional governante o controle de 105 prefeituras das 146 em disputa.
Ortega, além disso, usou sua influência na Suprema Corte de Justiça para que os juízes emitissem uma sentença que dá a ele a oportunidade de se reeleger em 2011, passando por cima da Constituição que proíbe a reeleição contínua.
Depois da crise desatada pelas denúncias de fraude, o país sofreu com a retirada de parte da ajuda internacional - grande motor, junto com as remessas, de sua esquálida economia.
Os Estados Unidos decidiram cancelar US$ 64 milhões (R$ 109 milhões) da Cuenta Reto del Milenio, que seriam investidos em projetos de infraestrutura nas áreas mais pobres do oeste da Nicarágua, abrindo possibilidades de emprego.
Uma organização de solidariedade italiana cancelou a construção de um hospital em León, a 97 quilômetros a oeste de Manágua, e o Grupo de Apoio Orçamentário, do qual fazem parte vários países europeus, congelou US$ 97 milhões (R$ 166,5 milhões) que entregam diretamente ao orçamento do país. Essa ajuda está condicionada ao respeito aos direitos humanos, à democracia e às instituições, matérias nas quais o governo de Ortega parece suspenso por organismos internacionais.
"Estamos preocupados com a situação da democracia e a governabilidade. Acompanhamos a situação bem de perto. O diálogo com o governo continua, ainda que não tenha dado os frutos esperados (...) Mas não poderá continuar indefinidamente: haverá um momento em que uma decisão deverá ser tomada sobre o que será feito com esses fundos. Se os europeus consideram que não existe um mínimo de garantias, talvez a ajuda seja suspensa indefinidamente", explica uma fonte diplomática.
Para fechar o rombo aberto pela suspensão da cooperação, o governo de Ortega decidiu reformar o orçamento, reduzindo as quantias destinadas à saúde e à educação. A Nicarágua não investe em educação nem mesmo 7% de seu PIB, que é a porcentagem recomendada pela Unesco, segundo o economista Adolfo Acevedo. Neste país, o teto das escolas, deterioradas pelo uso, cai em cima dos estudantes, como aconteceu em setembro no colégio Camilo Zapata de Manágua, ferindo quatro crianças de segunda e terceira série.
A crise econômica internacional também joga contra os nicaraguenses. Dados do Centro de Trâmites das Exportações (Cetrex) mostram que as vendas de produtos nicaraguenses caíram 11% nos primeiros cinco meses do ano. Até junho os rendimentos registraram uma queda de 9% e as remessas sofriam uma baixa de 5%.
"A Nicarágua é um país com credibilidade deteriorada. Ortega não saiu da cova dos anos 80, quando havia caos, ingovernabilidade. A Nicarágua é um país com um Estado de direito suplantado pelo coleguismo e uma economia em queda", explica o professor Orlando López.
Por isso, é compreensível que neste país a pobreza se multiplique e não seja raro encontrar nos ônibus uma mulher pedindo ajuda para operar um câncer ou um homem para suportar seus problemas.
A saúde do Estado anda tão mal quanto. O governo incentiva uma reforma tributária que o permita aumentar as arrecadações e se sustentar. O projeto recebeu o rechaço geral da população, porque estabelece o aumento de impostos às mercearias, lojas de bairro que são a base do comércio nicaraguense, e cria impostos para as contas de poupança, pensões dos aposentados e remessas.
Muitos dos problemas que o país enfrenta, dizem os analistas, poderiam ser solucionados com a ajuda dada pelo presidente da Venezuela Hugo Chávez ao presidente Ortega, que em 2008 chegou a US$ 457 milhões (R$ 784 milhões). Este é um orçamento paralelo que representa um terço daquele declarado pelo Estado, que chega a US$ 1,5 bilhão (R$ 2,57 bilhões). A ajuda venezuelana é usada de maneira livre pelo presidente Ortega.
Até agora, à diferença dos passageiros que sobem na linha 114, a crise parece não afetar a elite do governo. A imprensa nicaraguense denunciou que altos funcionários de Ortega adquiriram nos últimos meses luxuosas casas em áreas exclusivas de Manágua ou em praias cristalinas do Pacífico. O presidente do Conselho Supremo Eleitoral, Roberto Rivas, recebe um salário mensal de US$ 5 mil (R$ 8,5 mil) e conta com mansões em San José, na Costa Rica. O presidente Ortega comprou recentemente dois helicópteros MI-17 de fabricação russa a um preço que varia entre US$ 3 e 5 milhões (R$ 5 e 8,5 milhões) cada. Segundo os meios de comunicação, as aeronaves seriam usadas para o traslado do presidente e sua família.
"Ortega é o protótipo do novo autoritarismo latino-americano: clientelista com os setores populares, cooptador frente aos setores empresariais (façam negócios, desde que não se metam na política), e heterodoxo nas formas de repressão. Já não se usam os exércitos, mas as turbas paramilitares, a coerção fiscal, a perseguição administrativa, a chantagem judicial", disse Edmundo Jarquín, coordenador do Movimento Renovador Sandinista.
Tradução: Eloise De Vylder
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