domingo, 15 de agosto de 2010

Dilma na Revista Época


Por Leandro Loyola, Eumano Silva e Leonel Rocha

Revista Época

Em outubro de 1968, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um documento de 140 páginas sobre o estado da “guerra revolucionária no país”. Quatro anos após o golpe que instalou a ditadura militar no Brasil, grupos de esquerda promoviam ações armadas contra o regime. O relatório lista assaltos a bancos, atentados e mortes. Em Minas Gerais, o SNI se preocupava com um grupo dissidente da organização chamada Polop (Política Operária). O texto afirma que reuniões do grupo ocorriam em um apartamento na Rua João Pinheiro, 82, em Belo Horizonte, onde vivia Cláudio Galeno Linhares. Entre os militantes aparece Dilma Vana Rousseff Linhares, descrita como “esposa de Cláudio Galeno de Magalhães Linhares (‘Lobato’). É estudante da Faculdade de Ciências Econômicas e seus antecedentes estão sendo levantados”. Dilma e a máquina repressiva da ditadura começavam a se conhecer.

Durante os cinco anos em que essa máquina funcionou com maior intensidade, de 1967 a 1972, a militante Dilma Vana Rousseff (ou Estela, ou Wanda, ou Luiza, ou Marina, ou Maria Lúcia) viveu mais experiências do que a maioria das pessoas terá em toda a vida. Ela se casou duas vezes, militou em duas organizações clandestinas que defendiam e praticavam a luta armada, mudou de casa frequentemente para fugir da perseguição da polícia e do Exército, esteve em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, adotou cinco nomes falsos, usou documentos falsos, manteve encontros secretos dignos de filmes de espionagem, transportou armas e dinheiro obtido em assaltos, aprendeu a atirar, deu aulas de marxismo, participou de discussões ideológicas trancada por dias a fio em “aparelhos”, foi presa, torturada, processada e encarou 28 meses de cadeia.

Hoje candidata do PT à Presidência da República, Dilma fala pouco sobre esse período. ÉPOCA pediu, em várias ocasiões nos últimos meses, uma entrevista a Dilma para esclarecer as dúvidas que ainda existem sobre o assunto (leia algumas delas no quadro da última página). Todos os pedidos foram negados. Na última sexta-feira, a assessoria de imprensa da campanha de Dilma enviou uma nota à revista em que diz que “a candidata do PT nunca participou de ação armada”. “Dilma não participou, não foi interrogada sobre o assunto e sequer denunciada por participação em qualquer ação armada, não sendo nem julgada e nem condenada por isso. Dilma foi presa, torturada e condenada a dois anos e um mês de prisão pela Lei de Segurança Nacio-nal, por ‘subversão’, numa época em que fazer oposição aos governos militares era ser ‘subversivo’”, diz a nota.

Dilma foi denunciada por chefiar greves e assessorar assaltos a banco
A trajetória de Dilma na luta contra a ditadura pode ser conhecida pela leitura de mais de 5 mil páginas de três processos penais conduzidos pelo Superior Tribunal Militar nas décadas de 1960 e 1970. Eles estão no acervo do projeto Brasil: Nunca Mais, à disposição na sala Marco Aurélio Garcia (homenagem ao assessor internacional da Presidência) no arquivo Edgard Leuenroth, que funciona em um prédio no campus da Universidade de Campinas, em São Paulo, e em outros arquivos oficiais. A leitura de relatórios, depoimentos e recursos burocráticos permite conhecer um período da vida de uma pessoa que mergulhou no ritmo alucinante de um tempo intenso. O contexto internacional dos anos 1960, de um mundo dividido entre direita e esquerda, em blocos de países capitalistas e comunistas, propiciava opções radicais. O golpe militar de 1964 instaurou no Brasil um regime ditatorial que sufocou as liberdades no país e reprimiu oposições. Milhares de pessoas foram presas por se opor ao regime, centenas foram assassinadas após sessões de tortura promovidas por uma horda de agentes públicos mantidos ocultos ou fugiram para o exílio para escapar da repressão.

Dilma Rousseff foi um desses jovens marxistas que, influenciados pelo sucesso da revolução em Cuba liderada por Fidel Castro nos anos 50, se engajaram em organizações de luta armada com a convicção de que derrubariam a ditadura e instaurariam um regime socialista no Brasil. Dilma está entre os sobreviventes da guerra travada entre o regime militar e essas organizações. Filha de um búlgaro e uma brasileira, estudante do tradicional colégio Sion, de Belo Horizonte, a vida de classe média alta de Dilma mudou a partir do casamento com o jornalista Cláudio Galeno Magalhães Linhares, em 1967. “(Dilma) Ingressou nas atividades subversivas em 1967, levada por Galeno Magalhães Linhares, então seu noivo”, afirma um relatório de 1970 da 1a Auditoria Militar. As primeiras menções a Dilma em documentos oficiais a citam como integrante de uma dissidência da Polop. Esse grupo adotou o nome de Organização. Com novas adesões de militantes que abandonaram o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), a Organização se transformou em Colina (Comando de Libertação Nacional). Em seu documento básico, o Colina aderiu às ideias de Régis Debray, autor francês que, inspirado na experiência cubana de Fidel Castro, defendia a propagação de revoluções socialistas a partir de focos guerrilheiros. A doutrina de Debray ficou conhecida como “foquismo”.

Ex-contemporâneos de prisão citam o apartamento de Dilma da Rua João Pinheiro, em Belo Horizonte, como um dos principais pontos de reuniões da organização. Em depoimento prestado no dia 4 de março de 1969, o militante do Colina Ângelo Pezzutti afirma que “encontrou-se (com outro militante) algumas vezes no apartamento 1.001, Condomínio Solar, residência de Galeno e Dilma”. Dilma é citada como responsável por ministrar aulas de marxismo, comandar uma “célula” na universidade para atrair novos militantes para a causa. “Em princípios de 1968, o declarante, por recomendação de Carlos Alberto, coordenou uma célula política, na qual tomaram parte Dilma, estudante de economia, cujo nome de guerra é Estela, Erwin e Oscar (nomes de outros dois militantes)”, diz o depoimento de outro militante, Jorge Raimundo Nahas. “O objetivo principal dessa célula era trabalhar o meio estudantil.” Um dos universitários recrutados foi Fernando Damata Pimentel, de 17 anos. Ex-prefeito de Belo Horizonte, Pimentel é candidato ao Senado pelo PT e é um dos coordenadores da campanha de Dilma.

De acordo com os depoimentos, nas reuniões – muitas realizadas no apartamento de Dilma – o grupo decidia suas ações. Em seu depoimento, Nahas afirmou que parte do Colina, com o decorrer do tempo, passou a acreditar que a organização deveria ter um caráter mais militar. Foram criados setores de “ex-propriação, levantamento de áreas, sabotagem e inteligência e informações”. “Dilma e Oscar permaneceram no setor estudantil”, diz Nahas. Essa decisão marca um ponto de inflexão na curta história do Colina. O grupo passou a fazer ações armadas. O historiador Jacob Gorender, que esteve preso com Dilma no presídio Tiradentes, em São Paulo, é autor de Combate nas trevas, o mais completo relato da luta armada contra a ditadura militar. Ele afirma que o Colina foi uma das poucas organizações a fazer a “pregação explícita do terrorismo”.

De acordo com Gorender, em 1968, o Colina já aderira à luta armada. Segundo ele, no dia 1o de julho de 1968, o Colina matou por engano o oficial militar alemão Otto Maximilian von Westernhagen, que fazia um curso no Rio de Janeiro. A intenção do Colina era eliminar o militar boliviano Gary Prado, que estava no mesmo curso. Prado fora o responsável pela prisão de Che Guevara, o célebre líder da revolução cubana. O Colina ajudou a promover greves, assaltou bancos, roubou carros e matou policiais em confrontos em Minas e no Rio (leia o quadro na página ao lado). Na denúncia encaminhada à Justiça Militar em 1970, o juiz auditor José Paulo Paiva afirma que, no Colina, Dilma “chefiou greves e assessorou assaltos a bancos”. Não há registro de que Dilma tenha participado diretamente das ações armadas do Colina – algo que ela sempre negou.

A série de roubos a banco, no final de 1968, pôs a polícia no encalço dos militantes. Um deles, Pezzutti, foi preso – ou, no jargão da militância, “caiu” – no dia 14 de janeiro de 1969. Torturado, Pezzutti deu informações que levaram a polícia a três “aparelhos”, como eram chamados os locais onde viviam e se reuniam os militantes, do Colina. Na noite de 29 de janeiro de 1969, a polícia atacou três casas em Belo Horizonte: na Rua Itacarambu, na Rua Itaí e na Rua 34. Na Itacarambu houve confronto. Quando os policiais entraram na casa, Murilo Pinto da Silva, então com 22 anos, e outro militante reagiram com rajadas de metralhadora. Os tiros mataram o inspetor Cecildes Moreira de Faria e um guarda civil chamado José Antunes Ferreira e feriram outro policial. Na Rua Itaí, a polícia achou documentos. Na Rua 34, encontrou armas e bombas. Na Rua Itacarambu foram apreendidos pistolas, revólveres, um fuzil e metralhadoras Thompson e INA, explosivos e uniformes da polícia. Banido do país em 1971, Pezzutti passou pelo exílio no Chile e depois morreu em um acidente de moto na França, em 1975.

A partir das prisões, a situação do Colina ficou difícil. Dilma e Cláudio Galeno abandonaram o apartamento da Rua João Pinheiro. A Justiça Militar abriu um Inquérito Policial Militar (IPM), conduzido pelo então coronel Otávio Aguiar de Medeiros – uma década depois, promovido a general, Medeiros seria o poderoso chefe do SNI no governo João Figueiredo. No dia 11 de março de 1969, à frente do IPM que investigava o Colina, Medeiros assinou o despacho número três. O texto, de cinco linhas, ordena uma operação de busca e apreensão no apartamento de Dilma e Galeno. Eles só encontraram cadernos, documentos pessoais e livros como Revolução brasileira, de Caio Prado Júnior, e Revolução e o Estado, de Fidel Castro.

Dilma e Galeno já estavam na clandestinidade. Em depoimento prestado à Justiça Militar em 21 de outubro de 1970, Dilma afirma que o casal fugiu de Belo Horizonte com “Cr$ 6.500 (cruzeiros) mais ou menos e se mantinham com esse dinheiro”. Segundo o depoimento, eles passaram um mês no “Hotel Familiar Baia”, no Rio de Janeiro, depois foram para um apartamento na Rua Santa Clara, em Copacabana. O casal também passou alguns dias na casa de uma tia de Dilma, sob o pretexto de que estava de férias, segundo Dilma conta em depoimento. Com o dinheiro da organização, militantes como Dilma alugavam casas, dormiam no chão para não ter de comprar móveis, se sustentavam e compravam carros e armas.

Em meados de 1969, os militantes do Colina começaram a discutir uma fusão com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Liderada pelo ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, a VPR era uma das organizações mais importantes da luta armada. Lamarca abandonara o Exército ao fugir do quartel de Quitaúna, em Osasco, com um caminhão com armas e munições. Em abril de 1969, Colina e VPR realizaram um Congresso em Mongaguá, no Litoral Sul de São Paulo. Pela VPR estavam Carlos Lamarca, Antonio Espinosa, Cláudio de Souza Ribeiro, Fernando Mesquita Sampaio e Chizuo Ozawa, cujo codinome era Mário Japa. Pelo Colina estavam Dilma, seu segundo marido, Carlos Franklin de Araújo, Carlos Alberto de Freitas (codinome Breno), Maria do Carmo Brito e Herbert Eustáquio de Carvalho (ou Daniel). No meio das discussões, segundo Espinosa, Dilma e Carlos Alberto de Freitas lembraram que tinham de consultar “as bases” da Colina. As conversas foram interrompidas e retomadas em julho, no mesmo local. Ao final, as duas organizações se fundiram para formar a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR Palmares). “Dilma e Breno temiam que a VPR fosse excessivamente militarista”, afirma Antonio Espinosa. Ele veio da VPR e se tornou um dos comandantes da VAR Palmares. “Ao mesmo tempo, Lamarca e Cláudio temiam que o pessoal do Colina fosse muito assembleísta, estudantil.” A desconfiança era recíproca, mas não era discutida abertamente.

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