terça-feira, 23 de novembro de 2010

O cárcere das almas


Escrito por Waldson Muniz

Movimento Endireitar

O século vinte viu chegarem ao poder nazismo e comunismo, duas ideologias em essência congêneres, a despeito dos seus diferentes aspectos exteriores. Citado por Alain Besançon em A Infelicidade do Século (1), um estudioso francês classifica nazismo e comunismo de gêmeos heterozigotos: o nazista se considera um artista, o comunista, um virtuoso; o nazista vê todo o mal do mundo decorrer da existência de raças inferiores, o comunista, da propriedade privada; ambos se apresentam à pobre e comum humanidade como a perfeição social, moral e intelectual; ambos se baseiam na idéia da total impossibilidade de composição entre "nós" e "eles". A vitória de suas propostas deve fazer-nos pensar, com profundidade, na observação de Hayek, para quem "quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos homens concordarem sobre um programa negativo - o ódio a um inimigo ou a inveja aos que estão em melhor situação - do que sobre qualquer plano positivo" (2). É dos fundos mais baixos da alma humana que emergem esses dois projetos sociais, região para a qual pretendem levar a todos.

Graças à intensa e diligente aplicação de técnicas de propaganda tão sutis quanto eficientes e de todo insuspeitadas pelo grande público, a esquerda conseguiu não apenas que fosse esquecida sua gênese comum com o nazismo mas também - e principalmente - que, aos olhos da gente comum, comunismo e nazismo parecessem opostos inconciliáveis: um assumiu o papel de ser a mais tirânica e perversa forma de governo, o outro, o de ser a mais pura e democrática, sob a qual e apenas sob a qual, é possível o pleno florescimento material e espiritual. Anos e anos de propaganda sub-reptícia envolveram a esquerda numa couraça de honradez, avanço e bondade, ao mesmo tempo que associaram a direita a retrocesso, obscurantismo e insensibilidade. Hoje, as duas reputações são resistentes a todos os argumentos e fatos.

Dois episódios recentes exemplificam esse estado de coisas: enquanto causou imenso e justo rumor a foto em que o jovem príncipe britânico apareceu com a cruz suástica nazista num braço, fez-se absoluto silêncio acerca das imagens de campos de trabalhos forçados para opositores do regime comunista coreano. Num caso, tem-se a visão do símbolo, ao qual logo se associa todo o mal que produziu aquele insano regime; noutro, a do mal em curso, a produzir vítimas. Para um, todo tipo de reação, da mais sincera, que é a de quem sofreu na pele o jugo nazi-fascista, até a mais oportunista, que é a de quem quer apenas vender jornal.

Na introdução da biografia de Stalin (3), Dmitri Volkogonov alerta o leitor sobre a mais importante característica do "guia genial dos povos": "Tenhamos sempre em mente que foi um mestre em fazer passar seus erros, omissões e crimes como conquistas, sucessos, visão, sabedoria e constante preocupação com o povo". Sem o acréscimo de uma vírgula sequer, a definição serve, à justa, para toda a esquerda. O mesmo espírito moveu Bertolt Brecht a ensinar: "Quem luta pelo comunismo tem de poder lutar e não lutar; dizer a verdade e não dizer a verdade; prestar serviços e negar serviços; manter a palavra e não cumprir a palavra; enfrentar o perigo e evitar o perigo; identificar-se e não se identificar. Quem luta pelo comunismo tem de todas as virtudes apenas uma: a de lutar pelo comunismo." Também é do renomadíssimo dramaturgo a frase que Anne Applebaun cita em Gulag, uma história dos campos de prisioneiros soviéticos (Ediouro, 2004), a propósito da matança de inocentes na União Soviética: "Quanto mais inocentes eles são, mais merecem morrer".

Leitura obrigatória para todo aquele que deseja saber o que foram os anos stalinistas e pós-stalinistas, o livro de Applebaun é em tudo impressionante. À questão de se ter apagado das mentes o que é o inferno comunista ela se refere, relatando o que viu num passeio por Praga, então recentemente democratizada. "Expunham-se pinturas de ruas adequadamente bonitinhas, junto com pechinchas de bijuterias e com chaveiros com a palavra "Praga". Em meio ao bricabraque, podia-se comprar parafernália militar soviética (quepes, insígnias, fivelas) e pequenos "buttons", as imagens de Lênin e Brejnev que os escolares soviéticos outrora prendiam nos uniformes. A cena me pareceu estranha. A maioria dos que compravam esses objetos era de americanos ou europeus ocidentais. Todos eles ficariam enojados com a idéia de usar uma suástica. No entanto, ninguém ali fazia objeções a ostentar a foice e o martelo numa camiseta ou num boné. Foi um episódio menor; mas às vezes é justamente por coisas assim que se observa melhor o clima cultural. Pois ali a lição não poderia ter sido mais clara: se o símbolo de uma matança nos enche de horror, o de outra nos faz rir." Assim Applebaun analisa o fenômeno: "A Guerra Fria produziu James Bond e thrillers, mais os russos de gibi do tipo que aparecem nos filmes de Rambo; nada, porém, tão ambicioso quanto a A Lista de Schindler ou A Escolha de Sofia. Steven Spielberg, provavelmente o principal diretor de Hollywood (gostem ou não), preferiu fazer filmes sobre campos de concentração japoneses (O Império do Sol) e sobre campos de concentração nazistas, mas não sobre campos de concentração stalinistas. Esses últimos não conquistaram da mesma maneira a imaginação de Hollywood." Quem leu a obra Aristóteles em nova perspectiva (4), sabe a importância da imaginação para o pensamento humano e para o domínio dele. Foi precisamente para esse alvo que, a certa altura do combate, a esquerda voltou suas baterias e não encontrou adversários, já que direita, conservadores e liberais simplesmente não tinham como oferecer resistência no novo teatro de operações, o qual eles desconheciam por completo.

Um exemplo do que pode fazer uma propaganda adequadamente preparada é dado por Anne Applebaun no caso de um prisioneiro, vítima de Stalin, que atribuía todo aquele sofrimento à ação de um dos inimigos do povo, tal qual dizia a propaganda oficial. "O poder da propaganda na URSS era tal", diz a autora, "que freqüentemente modificava a percepção da realidade". Ela também cita Alexander Soljenitsin que, em Arquipélago Gulag, dedica todo um capítulo aos comunistas, que "explicavam a detenção, a tortura e a reclusão deles próprios como obra muito astuciosa dos serviços secretos estrangeiros, ou da sabotagem em larga escala, ou de traição". Totalmente embotados pela propaganda, já não conseguiam distinguir o real e o imaginário, o que de fato viam e o que gostariam de ver. Esse dano cognitivo ultrapassou fronteiras e gerações, haja vista Anne Applebaun contar que, em conversa com um político inglês, ouviu dele que os nazistas eram perversos, mas a URSS fora desvirtuada, opinião compartilhada por Volkogonov. A pergunta cabível aqui é a de Jean François Revel (5): se o marxismo e o comunismo são intrinsecamente bons, como se explica que invariavelmente provoquem ditaduras sangrentas, todas as vezes e em todos os lugares onde são instalados?

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