quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Do cabresto ideológico ao maná estatal

Por José Maria e Silva


Escola Sem Partido

Segundo a mitologia intelectual, que tende a ser mais dogmática do que a mitologia religiosa, juventude é sinônimo de rebeldia santa, motivada sempre por uma indignação espontânea, que facilmente se transforma em protesto contra as injustiças. Na América Latina, em face dos muitos golpes militares, o mito da juventude idealista é ainda mais forte, uma vez que os estudantes participaram ativamente da luta contra as diversas ditaduras do continente. O Brasil não foge à regra e, quando o assunto é o idealismo dos jovens, a União Nacional dos Estudantes (UNE) concorre com o célebre quadro de Eugène Delacroix — ela é a imagem histórica do protesto, a juventude conduzindo o povo.


Desde o final da década de 40, quando a UNE se engajou na luta pelo petróleo, passando pelos protestos contra o regime militar, foram muitas as manifestações estudantis que tiveram repercussão na vida nacional, quase sempre do lado oposto ao poder. A última delas foi o movimento dos “caras-pintadas”, que contribuiu para a queda de Fernando Collor, em 1992. Por isso, desde a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, a imprensa tem criticado a excessiva proximidade entre a UNE e o governo, com autoridades do poder petista desfilando nos congressos da entidade estudantil como se estivessem em casa.


Foi o que se viu em Goiânia na semana retrasada, quando a União Nacional dos Estudantes realizou seu 52º congresso, considerado o maior de sua história. O ex-presidente Lula e vários ministros do governo Dilma Rousseff discursaram no evento, que, segundo a imprensa, teve a participação de cerca de 8 mil estudantes. O congresso culminou com a eleição do novo presidente da UNE, o estudante Daniel Illiescu, de 26 anos, aluno de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele assume o lugar do estudante Augusto Chagas, de 29 anos.



Petrobras, a mamãe-banca-tudo


Em seu discurso no congresso da UNE, Lula defendeu a entidade e criticou os veículos de comunicação, afirmando que, quando presidente, suas falas eram um contraponto ao noticiário da imprensa: “Eu competia com o que eles falavam. E o povo acreditou mais em mim”. O congresso serviu até de palanque para o ex-presidente reforçar a pré-candidatura do ministro da Educação, Fernando Haddad, à Prefeitura de São Paulo. O ministro dividiu o palanque com Lula e, no dia seguinte, segundo a “Folha de S. Paulo”, o ex-presidente voltou a defender o nome de Haddad à sucessão de Gilberto Kassab.


Ao ser ovacionado pelos estudantes da UNE, Lula poderia evocar o defunto Brás Cubas, ao se lembrar do compungido discurso de um amigo ao pé de sua sepultura: “Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei”. Mas Lula é uma espécie de Joe Gould, o “Professor Gaivota” do jornalista Joseph Mitchell, e não deve ter lido Machado de Assis. A diferença é que o mendigo-filósofo nova-iorquino dizia compreender a língua das gaivotas, ao mesmo tempo em que escrevia a “história oral” de seu tempo, registrando conversas alheias, enquanto Lula acredita fazer ele próprio a história oral da nossa época, falando por todos os cotovelos, seus e nossos.


Só por isso é que o ex-presidente não consegue admitir que as críticas da imprensa são procedentes. Caso contrário, teria que se render aos fatos que a imprensa vem registrando sobre a UNE. Apenas o congresso da entidade em Goiânia custou ao governo federal muito mais do que o elogio fúnebre custou a Brás Cubas. O evento, com despesas estimadas em R$ 4 milhões, recebeu patrocínio de empresas estatais, como a Petrobrás, a mamãe-banca-tudo do Estado brasileiro. O restante veio da taxa de inscrição dos próprios estudantes, mais a ajuda do Governo de Goiás e da Prefeitura de Goiânia. Por isso é que o congresso foi chamado de “chapa-branca”, inclusive por setores do movimento estudantil.



Torneiras abertas à “rebeldia”


Mas, verdade seja dita, movimento estudantil a soldo de governos e partidos não é novidade. Talvez seja a regra. O congresso anterior da UNE, realizado em 2009, em Brasília, também contou com financiamento oficial. Segundo editorial do jornal “O Estado de S. Paulo”, publicado em 20 de julho de 2009, só o Ministério da Educação investiu R$ 600 mil naquele evento, que também recebeu R$ 150 mil do Ministério da Justiça; R$ 100 mil da Petrobrás; 50 mil do Ministério da Ciência e Tecnologia, além de verbas da Caixa Econômica Federal, dos Correios, dos Ministérios da Cultura e do Trabalho e das Secretarias Nacionais de Direitos Humanos e Juventude, totalizando R$ 920 mil em patrocínio.


Na época, as críticas da imprensa foram até mais acerbas do que agora. E com razão. Realizado em plena pré-campanha para a eleição presidencial do ano seguinte, o Congresso da UNE de 2009 foi um comício oficial, em que a maioria dos estudantes esgoelava o nome de Dilma Rousseff, uma minoria gritava o nome de Ciro Gomes e todos ovacionavam o presidente Lula. A então presidente da UNE, Lúcia Stumpf, orgulhou-se do fato de que, em 71 anos de sua história, era a primeira vez que a entidade convidava um presidente da República para seu congresso. Em decorrência dessa ligação umbilical com o governo, a UNE, mesmo ostentando uma falsa neutralidade no primeiro turno das eleições de 2010, mergulhou de cabeça na campanha de Dilma Rousseff no segundo turno, ajudando a demonizar seu ex-presidente, o tucano José Serra.


Desde que o PT chegou ao poder, a UNE vive do maná estatal. No governo tucano, a entidade recebeu apenas duas verbas expressivas: R$ 100,8 mil do Ministério da Educação, em 1995, e R$ 1,036 milhão do Ministério da Cultura, em 2002, mais uns trocados (R$ 75 mil) da Universidade Federal do Espírito Santo, totalizando R$ 1,137 milhão. Já no governo Lula, as torneiras do dinheiro público perderam a rosca e, só até abril de 2010, quando a ONG Contas Abertas fechou seu levantamento, jorraram nos cofres da UNE quase R$ 12,9 milhões — um aumento de 1.031% em relação ao montante gasto com a entidade pelo governo tucano.


A maior parte dessa verba foi repassada à UNE pelo Ministério da Cultura, num total de R$ 8,8 milhões. Em seguida, aparece o Ministério da Saúde, com um repasse de R$ 2,8 milhões. Os demais órgãos do governo que também deram dinheiro à entidade durante os dois mandatos de Lula foram: Ministério dos Esportes (R$ 449,6 mil); Fundo Nacional de Cultura (R$ 434,4 mil); Presidência da República (R$ 184,9 mil); Ministério da Ciência e Tecnologia (R$ 101,5 mil); e Secretaria Especial de Política para as Mulheres (R$ 27,7 mil). Em média, a UNE recebeu R$ 1,8 milhão por ano.



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