terça-feira, 1 de novembro de 2011

Crimes Comunistas



Por OESP






L'express

Tradução de Lauro Machado Coelho e Lea Passalacqua

Da URSS ao Camboja, passando pela China e a Coréia do Norte, o terror vermelho fez cerca de 85 milhões de vítimas. Pela primeira vez, e não sem criar polêmica, historiadores publicam "O Livro Negro do Comunismo".

O prefácio de O Livro Negro do Comunismo deveria ter sido escrito por François Furet, que morreu em julho. Ele considerava que este livro era o complemento de seu O Passado de uma Ilusão, no qual analisava a paixão política que levou tantos homens a cometer tantos massacres, muitas vezes antes de serem eles mesmos triturados pelo sistema a que tinham servido. Talvez a presença desse grande historiador tivesse evitado que esse empreendimento inédito terminasse em confusão: no fim de três anos de trabalho, o editor conseguiu lançar o livro por ocasião do 80º aniversário da Revolução de Outubro de 1917, mas seus autores, divididos, não se falam mais, antecipando as polêmicas que não vão deixar de surgir. Pois é uma outra memória, ainda tabu, que "O Livro Negro" ataca, propondo o primeiro balanço, em escala mundial, dos crimes cometidos pelo regime mundial. Contabilidade aterrorizadora: as diversa tentativas de construção do "homem novo" provocara, pelo mundo afora, a morte de 65 a 85 milhões de pessoas.

Sob a direção de Stéphane Courtois, uma dezena de historiadores dividiu a tarefa segundo as suas competências regionais. A contribuição de Nicolas Werth sobre a URSS, que ocupa cerca de um terço da obra, constitui um subsídio importante para a história da repressão soviética. Conhecedor de russo e familiarizado com os arquivos locais e dos trabalhos da nova geração de historiadores russos, Nicolas Werth realizou uma síntese espantosa dos métodos que serviram de modelo no mundo inteiro. A partir dos arquivos do período 1917-1921, mostra que o exercício do "terror como forma de governo" foi concebido bem antes da guerra civil e não foi uma conseqüência dela: o impulso criminoso, muito precoce, remonta a Lenin. Stalin limitou-se a retomar a herança da ditadura, declarando guerra a toda a sociedade.

O balanço soviético (cerca de 15 milhões de mortos) foi amplamente ultrapassado pela China de Mao Tsetung. O número de vítimas oscila entre 45 e 72 milhões de mortos. O maoísmo acrescenta a isso a particularidade de ter querido "reeducar uma sociedade inteira". Mas o primeiro prêmio da loucura sanguinária vai para o Khmer Vermelho que, de 1975 a 1979, eliminou de 1,3 a 2,3 milhões de pessoas no Camboja, que tinha uma população de 7,5 milhões.

A soma que "O Livro Negro" se propõe a fazer prossegue com o Leste europeu (Karel Bartosek), a Coréia do Norte (Pierre Rigoulot), e a África (Yves Santamaria), a América Latina (Pascal Fontaine), sem esquecer o Komintern (Jean-Louis Panné e Stéphane Courtois), estrutura internacional paramilitar dirigida por Moscou que, durante a Guerra Civil Espanhola, assassinou uma porção de membros das Brigadas Internacionais que "não andavam na linha".

Os autores do "Livro Negro" não se dividiram quanto ao fato de que, no Ocidente, e especialmente na França, tenta-se atenuar a importância dos crimes do comunismo, "que não foram submetidos a uma avaliação legítima e normal tanto do ponto de vista histórico quanto do ponto de vista moral", como diz Stéphane Courtois. Exemplos não faltam: no verão passado, foi descoberto, numa floresta da Carélia, um ossuário dos tempos de Stalin com nove mil vítimas. A imprensa francesa não disse uma só palavra a respeito. Os historiadores não se dividiram tampouco quanto ao uso que a Frente Nacional, de extrema-direita, que anda exigindo um "Nuremberg do comunismo", não deixaria de fazer do seu trabalho. Na maioria ex-comunistas, ex-maoístas ou ex-trotskistas, os autores do "Livro Negro", que continuam afirmando ser de esquerda, concordam com Stéphane Courtois que "não se deve deixar a uma extrema-direita cada vez mais presente o privilégio de dizer a verdade: é em nome dos valores democráticos, e não dos ideais nacionalistas fascistas, que se deve analisar e condenar os crimes do comunismo".

Contra a Humanidade - O conflito deles é mais profundo. E mais interessante. Refere-se à interpretação da noção de "crime". Trata-se de "crimes comunistas" ou de "crimes do comunismo". Pode-se falar de "crime contra a Humanidade"? A redação inicial da introdução e da conclusão, tal como Courtois a fez, irritou Werth, Margolin e Bartosek, redatores dos capítulos essenciais. O conflito foi violento: retenção dos manuscritos, nomeação de advogados, intimações entregues por oficiais de justiça, ameaças de processo...

Stéphane Courtois modificou muito os seus textos, mas o conteúdo da obra reflete ainda essas polêmicas. Textos puramente históricos, com todos os escrúpulos científicos costumeiros (os de Werth sobre a URSS são um modelo do gênero), surgem lado a lado com análises críticas ou que pedem abertamente a condenação dos crimes. Num texto que já não é mais uma conclusão, pois intitula-se "Por quê?", Courtois pergunta que mistério levou "militantes comprometidos com uma lógica de combate político a trocá-la pela lógica da exclusão, depois pela lógica eliminacionista e, finalmente, pela exterminação pura e simples de todos os elementos impuros. No extremo final dessa lógica, o que há é o crime contra a humanidade."Todos os termos do debate estão assim resumidos. Os crimes em questão, maciços, figuram entre os auges do horror neste século, mas pode-se dizer, por causa disso, que o "crime de massa" constitui o denominador comum e até mesmo a essência do comunismo? A ausência de liberdade e a repressão quotidiana parecem ser critérios mais universais do comunismo do que o "crime de massa", ausente de vários Estados.

Quanto à aplicação da noção de crime contra a humanidade, a discussão parece sofrer com o viés da fazer com que os crimes do comunismo se encaixem, custe o que custar, na definição de Nuremberg. Não foram julgados e Stéphane Courtois gostaria que o fossem: "A morte do filho de um kulak ucraniano, reduzido à fome pelo regime stalinista, vale a mesma coisa que a morte de uma criança judia do gueto de Varsóvia, reduzida à fome pelo regime nazista." Está aqui o outro tema de controvérsia: a comparação com os crimes do nazismo, já esboçada por François Furet. "A remodelagem dessas duas sociedades foi concebida da mesma maneira, ainda que os critérios de exclusão não fossem os mesmos", escreve Stéphane Courtois. Essa comparação é legítima, mas deve ser encarada com cuidado. Deve aproximar - porque as perdas humanas rivalizam em termos de horror - mas também distinguir. Os dois projetos se apresentam de forma diferente: de um lado, ideologia racionalista e universalista; do outro, revolução baseada na exaltação do instinto e da raça em proveito de um único povo. Mas não há dúvida alguma que a eliminação, na URSS, de certas camadas sociais (inclusive mulheres e crianças) enquanto classe hereditária, não perde nada para os crimes nazistas. Da mesma forma, parece legítimo falar de "genocídio" a respeito do Khmer Vermelho.

Dois totalitarismos - No entanto, essa vontade de equivalência semântica não é historicamente redutora? Pois, se se pode discutir interminavelmente a comparação entre nazismo e comunismo e a amplitude respectiva das desgraças que ambos provocaram (25 milhões de vítimas em 12 anos de nazismo; mais de 65 milhões em 80 anos de comunismo), não é possível assimilar um ao outro. A começar pelo fato de que o nazismo possui uma característica única: a negação de humanidade que resulta no empreendimento de destruir populações inteiras. Singularidade à qual estão ligadas outras práticas que não têm equivalente nos regimes comunistas: a esterilização em massa, o assassinato dos deficientes físicos e dos doentes mentais, as experiências científicas mortais com cobaias humanas.

Em compensação, uma diferença entre esses dois totalitarismos sangrentos parece ilegítima: a sua condenação desigual na Europa ocidental. Várias razões objetivas explicam essa dissimetria: não passamos pela experiência de uma ocupação soviética; a URSS participou, com os aliados, da queda do nazismo; e os militantes comunistas lutaram, a partir de junho de 1941, ao lado da Resistência européia. Acrescentemos a isso o gosto um tanto frívolo pela idéia de revolução, que François Furet já tinha diagnosticado, e acaba de ser ilustrado, uma vez mais, pela "guevaromania", embora o "Che", muito chegado num campo de trabalho forçado e num "paredón", não fosse exatamente uma personagem da Disneylândia.

Muitos militantes e intelectuais cantaram os méritos de Stalin e Mao. Muitos deles chegam a afirmar que "eles não sabiam". Ignorância cúmplice e cegueira culpada: nas décadas de 50 e 60, os crimes tornaram-se incontestáveis. Um intelectual comunista, professor universitário de história, podia ainda escrever, em 1978, que o regime leninista "foi, talvez, um dos governos revolucionários da História que mais se preocupou em poupar vidas" e que os seus primeiros anos "fizeram com que a sociedade russa desse, de maneira irreversível, um considerável salto para a frente no plano das liberdades reais e formais".

Hoje, ninguém mais defende o stalinismo, nem o maoísmo, nem essa "crueldade necessária" com a qual brilhavam "os olhos azuis da Revolução", como dizia o poeta francês Aragon.

O PC francês, os seus companheiros de viagem e os ex-esquerdistas romperam com o passado. Mas sem pensar nele. Sem se explicar. Nesta temporada dos arrependimentos, há, deste lado de cá, muitas oportunidades que se estão perdendo. (E.C.)

Fontes

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